O diálogo secreto entre Jacques Demy, Spike Lee e o design do seu feed.

A faísca veio de um vídeo da Criterion Collection. Nele, Malcolm Washington — diretor de The Piano Lesson e filho de Denzel — compartilhava o que mais ama no cinema: o diálogo silencioso entre artistas através do tempo. E então ele lançou a ideia que me capturou: “Quando você vê Os Guarda-Chuvas do Amor e depois Faça a Coisa Certa”, disse ele, “você está vendo artistas em diálogo”.
Fiquei obcecado. Que conversa seria essa?
De um lado, um musical francês de 1964, uma sinfonia de tons pastel. Do outro, uma bomba-relógio cromática de 1989, um dia febril no Brooklyn. Um é um refúgio; o outro, uma arma.
A chave para entender esse diálogo, percebi, não estava no quê, mas no como. O que une Demy e Lee é a maestria de uma gramática do artifício: um controle estético absoluto que rejeita o realismo para alcançar um impacto emocional puro. Eles constroem mundos herméticos, caixinhas de música visuais onde cada cor, som e ângulo são notas de uma partitura invisível, composta para nos fazer sentir.
E foi aí que a ficha realmente caiu. Essa mesma filosofia, essa arquitetura da emoção, não ficou confinada à tela.
Ela escapou. Foi traduzida para código. Automatizada.
Hoje, sua lógica opera silenciosamente no meu e no seu bolso, orquestrando não uma história de duas horas, mas nossa atenção e emoções, 24 horas por dia. Este ensaio é minha tentativa de rastrear essa gramática: de sua origem na arte à sua encarnação como o motor das plataformas que usamos. É a história de como uma forma de arte se tornou uma arquitetura de controle.
E de como entendê-la, talvez, seja nossa única chance de resistir.
Movimento I: a engenharia da emoção em celuloide
Antes de qualquer algoritmo, os cineastas já eram os arquitetos da experiência do usuário. Para tatear a raiz do nosso presente digital, foi preciso voltar aos mestres que primeiro aprenderam a programar nossos corações com luz e cor.
1.1. Demy e a alquimia da melancolia
Ver Os Guarda-Chuvas do Amor é ser submerso num ecossistema emocional totalmente controlado. Demy aplicou uma rigorosa teoria das cores para transformar Cherbourg numa partitura visual. Em contraste com o mundo predominantemente azul, branco e cinza da oficina onde Guy trabalha — um espaço da realidade operária — , a loja de guarda-chuvas de Geneviève e sua mãe é um universo de tons pastel e oníricos. A cor rege a jornada da protagonista: do rosa juvenil do primeiro amor ao preto de uma vida adulta que lamenta o que se perdeu.
Sua escolha mais radical, no entanto, é o diálogo inteiramente cantado. Não é um musical com canções que interrompem a história; a própria história é uma canção. Ao fazer isso, Demy nos tranca dentro do seu artifício. O propósito ficou claro: sua arte é um ato de preservação. Ele conta uma história de partir o coração, mas a encapsula numa beleza tão avassaladora que a dor se torna suportável. A estética filtra o trauma. Transforma-o em melancolia.
O mundo de Demy é um espaço seguro para sentir emoções difíceis.
1.2. Lee e a fúria cromática
Se Demy construiu um refúgio, Spike Lee forjou uma arma. Ele pegou os mesmos princípios e os virou do avesso. Faça a Coisa Certa usa o artifício não para nos proteger da realidade, mas para nos forçar a encará-la.
Sua estética é pura opressão. Sua aplicação da teoria das cores cria uma paleta agressiva de vermelhos e laranjas que nos faz sentir o calor sufocante. Não há respiro. Quase não há o azul do céu. A câmera usa os famosos ângulos holandeses para nos desorientar, mostrando visualmente que o mundo está fora de eixo. O som de “Fight the Power” não é fundo musical; é um personagem, a voz da resistência. A tensão explode quando, durante a contínua confrontação sobre a ausência de artistas negros na “Parede da Fama” da pizzaria, Sal esmaga a boombox de Radio Raheem com um taco de beisebol.
Aqui, a tese do filósofo Jacques Rancière se torna palpável. Para ele, a política e a arte compartilham o mesmo campo de batalha: a “partilha do sensível”, a forma como uma sociedade define o que pode ser visto, ouvido e dito. Demy usou seu poder estético para criar um refúgio. Lee, para forjar uma arma. Um nos deu um espaço para sentir; o outro, uma razão para agir. Ambos, à sua maneira, fizeram política ao redesenhar nossa experiência sensorial.

Movimento II: do convite à manipulação
Por muito tempo, essa gramática pareceu pertencer apenas ao cinema. Aos poucos, sua lógica começou a ecoar em outros lugares, principalmente nas telas dos celulares. A linguagem do cinema não morreu, ela foi traduzida.
2.1. A gramática do cinema no seu bolso
A teoria do design emocional de Don Norman descreve exatamente o que Demy e Lee faziam:
- Visceral: A beleza de Demy ou a agressividade de Lee. Hoje, é a calma do azul suave do app Headspace contra o pop-up irritante de urgência na notificação do WhatsApp.Comportamental: A fluidez funcional do mundo cantado de Demy. Hoje, é a satisfação do swipe no Tinder — e o leve swoosh sonoro que o acompanha.Reflexivo: A melancolia de um ou a raiva do outro. Hoje, é a história que contamos a nós mesmos sobre nossa identidade digital depois de uma hora na enxurrada de stories do Instagram.
As microinterações de um “like” animado, as barras de progresso do LinkedIn, o som de um “match”… tudo é a gramática do cinema aplicada para moldar nosso comportamento.
2.2. A lógica dos “dark patterns”
Mas é aqui que o espelho se parte. É aqui que a gramática que na arte servia à catarse é reescrita para servir ao capital.
No cinema, a emoção era o destino. Na tela do seu celular, ela é a isca.
Essa mudança abre a porta para os “dark patterns” — padrões de design manipulativos, criados para induzir decisões sem consciência plena. Pense no “Confirmshaming”, que usa a culpa para forçar uma escolha com um texto como: “Não, não quero o desconto anual. Prefiro pagar mais caro todo mês”. Ou no loop de confirmações que transforma o cancelamento de um streaming numa maratona de cliques, testando sua paciência até a desistência.
A gramática da emoção, antes usada para a arte, foi industrializada para o lucro. O espectador era convidado a sentir; o usuário é solicitado a fazer.
Quantas vezes você já se sentiu sutilmente encurralado por uma interface?
Movimento III: a industrialização da alma
A tradução manual desses princípios era só o começo. O passo seguinte foi a automação em escala industrial.
3.1. A máquina que lê emoções
Nessa jornada, a gente se depara com a Computação Afetiva, um campo da IA que é a evolução final desse projeto: máquinas que aprendem a ler e simular nossas emoções. Elas analisam nossas expressões faciais, nosso tom de voz, nossos sinais vitais. Nossa vida interior deixa de ser privada; a tecnologia aprende a ler nossas emoções antes mesmo que nós as processemos conscientemente.
Para Walter Benjamin, o que definia a singularidade da obra de arte era sua “aura”, sua existência única no tempo e no espaço. Em suas palavras, seu “hic et nunc” (aqui e agora). O que ele não previu foi a criação de uma “aura do algoritmo”, onde a própria emoção se torna reprodutível, padronizada e otimizada em massa, perdendo seu aqui e agora.
3.2. A máquina que gera ressentimento
E é aqui que o mecanismo das redes sociais se torna mais claro. Ele usa as estratégias de Demy e Lee ao mesmo tempo, com um único objetivo: maximizar o engajamento. Percebo isso na minha própria rolagem: o feed do Twitter (ou o nome que o imbecil do dono der, X) me entrega uma sequência de vídeos de gatinhos fofos (a bolha de Demy) e, logo em seguida, me joga numa thread de discussões estúpidas, com comentários cheios de ódio que me fisgam pela indignação (a tempestade de Lee).
De um lado, o sistema nos oferece a Bolha de Demy: um feed confortável que reforça o que já acreditamos, criando uma sensação de harmonia. De outro, ele lucra com a Tempestade de Lee: o algoritmo descobriu que raiva e indignação geram mais cliques e comentários. O conflito é rentável.
O sistema não otimiza para o nosso bem-estar, mas para o lucro da plataforma. Nessa equação, nós não somos os clientes. Somos os instrumentos.
Coda: escrever contra a máquina
Chegar ao fim desta jornada me deixou com uma conclusão desconfortável: o artifício é inescapável. A questão não é como fugir dele, mas que tipo de artifício escolheremos habitar.
A verdadeira lição aqui é que as ferramentas da manipulação também podem ser as ferramentas do despertar. A resposta a um artifício que nos controla não é a ausência de artifício. É um artifício consciente.
Para navegar nesta era, precisamos de uma literacia estética. E para isso, o filósofo Gilles Deleuze nos oferece um mapa. Ele não via o cinema apenas como entretenimento, mas como uma nova “forma de pensamento”. Ele dividiu sua história em duas grandes fases:
- A imagem-movimento: É o cinema clássico, o da ação-reação. Um herói vê o perigo e age. A narrativa avança num fluxo lógico e claro, focado na ação.A imagem-tempo: É o cinema moderno. Aqui, o elo entre ver e agir se quebra. Os personagens se encontram em situações que não conseguem resolver. A câmera se demora, o tempo se arrasta. O cinema nos força a parar de apenas reagir e começar a pensar sobre o que vemos.
Hoje somos bombardeados por uma terceira forma: a imagem-algoritmo. Uma imagem que não apenas nos mostra algo, mas que já nos leu, previu nossa reação e se adaptou para nos manter engajados. Ela não nos convida a pensar; ela pensa por nós.
A escolha é nossa, a luta é coletiva
Exercitar essa literacia com perguntas críticas é o primeiro passo fundamental. Mas será que conseguimos, sozinhos, controlar nossas ações em sistemas projetados por exércitos de engenheiros para serem viciantes? A resposta honesta é, provavelmente, não.
Colocar todo o peso da resistência no indivíduo é uma armadilha. A “escolha” de ser um arquiteto consciente de nossas vidas não acontece num vácuo. Ela é profundamente limitada pela arquitetura que nos é imposta.
Portanto, a verdadeira luta contra o poder dos sistemas opacos não é apenas individual, mas coletiva. Ela passa pelo entendimento, pelo estudo, pela pressão por regulamentações que exijam transparência e, em última instância, por uma luta política sobre quem controla essas infraestruturas que mediam nossa realidade.
A consciência individual é o ponto de partida, mas a ação coletiva é o horizonte. O artifício é poder. E o poder sem controle popular é dominação.
Referências
Filmes e vídeos
- Os Guarda-Chuvas do Amor (1964), dirigido por Jacques Demy.Faça a Coisa Certa (1989), dirigido por Spike Lee.Entrevista com Malcolm e John David Washington para a série “Closet Picks” da Criterion Collection, fonte da reflexão sobre o “diálogo silencioso” entre Jacques Demy e Spike Lee.
Autores e conceitos
- Don Norman e a teoria do Design Emocional, explorada em seu livro O Design do Dia a Dia.Jacques Rancière e o conceito de “A Partilha do Sensível”.Walter Benjamin e a teoria da “Aura” da obra de arte, em seu ensaio A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica.Gilles Deleuze e suas teorias sobre a Imagem-Movimento e a Imagem-Tempo, exploradas em seus livros Cinema I e Cinema II.
A arquitetura da emoção: como o design nos programa para sentir was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.