Você também quer. Só ainda não leu este outro texto.

“A utopia está lá no horizonte.
Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.
Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.”
– Fernando Birri, citado por Eduardo Galeano
Queria começar esse texto contando uma coisa que acontece comigo de ciclos em ciclos da vida e acredito que seja algo comum pra você também.
Existem músicas e vídeos específicos que marcaram fases do meu crescimento enquanto ser humano pensante. Neste artigo, trago referências pessoais (não também profissionais), e isso explica a mistura inicial de Pink Floyd com Eduardo Galeano.
Acontece que, em fases reflexivas — não necessariamente tristes — , costumo voltar aos discos do Pink Floyd. Entre eles, o Animals. Sei lá, me leva de volta ao momento da vida em que me entendi como gente. Que, claro, gosto de lembrar e carrego com carinho. Me dá forças, sabe.
Por outro lado, meu YouTube às vezes me recomenda vídeos de mais de 10 anos atrás. Alguns, eu ignoro porque não fazem mais sentido pro meu “eu” atual. Outros, me desbloqueiam memórias afetivas. No caso em questão, foi o vídeo de Galeano dando uma entrevista para o programa “Sangue latino”, do Canal Brasil, em que conta a história sobre como ele enxerga o sentido da palavra “utopia”. Baita entrevista, diga-se de passagem (ler na voz do comentarista futebolístico Neto).
Dessa vez, aleatoriamente, esses dois específicos eventos canônicos aconteceram na mesma época. E isso, de alguma maneira, me fez pensar: pô, utopia e porcos voando podem fazer sentido juntos. Vou adicionar o design na receita e tá pronto o sorvetinho. Quer dizer, o artigo.
Sim, é assim que funciona minha cabeça. E foi assim também que nasceu este texto, dando continuidade a outro, mas que você pode ficar em paz se ainda não leu aquele. Se gostar do que ler aqui, no final tem o link pro primeiro. Justo, né?
E bom, dito tudo isso, acho que podemos continuar a lista de pessoas que, assim como eu e você, acreditam no design como ferramenta de mudança social.
Ou seja, nesse texto, vamos voltar a dar voz a designers que defendem visões consideradas utópicas pra nossa atuação no mundo atual. Que acreditam no design como oportunidade de construir um mundo melhor e entendem sua responsabilidade perante a sociedade — e sim, o “dar voz” é trazer suas próprias falas pra cá.
Designers e o que falam sobre design

Alice Rawsthorn
Do ponto de vista histórico, um dos maiores problemas do design é ter sido tantas vezes confundido com estilização e menosprezado como uma atividade superficial, voltada apenas aos aspectos visuais de objetos ou espaços.
Tão perniciosa quanto essa crença é a suposição de que os recursos estilísticos do design estão a serviço de fins comerciais, para nos induzir a pagar bem mais por coisas de importância duvidosa que logo descartaremos com os demais resíduos tóxicos e não recicláveis em lixeiras abarrotadas.
Em 1971, no prefácio de seu livro ‘Design for the real world’, o designer ativista Victor Papanek já acusava os designers industriais de serem uma ‘laia perigosa’ ao ‘projetar automóveis de projeto criminoso que matam ou mutilam, ao gerar espécies inteiras de lixo permanente que entulham a paisagem e ao eleger materiais e processos que poluem o ar que respiramos’.
A importância crescente de outros atributos do design — de ordem tátil, funcional ou ética — haverá de contestar esses estereótipos e estimular mais pessoas a cultivar uma percepção cada vez mais eclética e sofisticada em relação ao design e ao seu potencial de tornar a vida mais desejável em muitíssimos aspectos — inclusive o de consumir menos porcaria, seja ela de bom gosto ou de qualquer outro tipo.
— Design como atitude

Anne Bush
No fim das contas, ser responsável é ter a capacidade de responder. Não é só querer agir, mas também entender o que você está fazendo, o contexto onde isso acontece e todas as possíveis consequências e interpretações.
Ensinar isso é ensinar a ter consciência crítica de toda a comunicação — não só da parte que você fez. Quando a gente ensina a pensar criticamente, a questionar nossa própria visão (o que a gente assume como verdade, os métodos que usa e os julgamentos que faz), e também a entender o contexto social onde aquilo acontece, a gente está incentivando a responsabilidade.
Pra mim, esse é o papel da universidade. O que a educação em design pode trazer pra uma sociedade mais participativa é um cidadão engajado e consciente, que entende o impacto de agir — ou de não agir — e que, no fim, tem o direito de escolher.
— Beyond Pro Bono (Citizen Designer). Tradução livre.

Coral Michelin
Precisamos inspirar, sermos o melhor exemplo que pudermos ser, na família, no trabalho, na comunidade, sabendo que todos vamos errar muitas vezes, até conseguirmos acertar.
Mas, já temos alguns indicativos, dentro do vasto campo do design para ecologia, do que podemos fazer:
- Não fazer — já temos coisas demais no mundo!
- Pensar para a durabilidade — não “seguir a moda”
- Projetar para escalas locais — massificar é, seguidamente, desperdiçar
- Usar recursos locais — pensando no bem de todo ecossistema local
- Reutilizar, sempre — mandar consertar, mesmo que custe igual ao novo
- Projetar para os corpos locais — não existe “design universal” que sirva para a nossa diversidade
- Usar o seu próprio idioma — não tem call, overview, Head de Design, tem ligação, panorama, líder — descolonize sua língua
- Pensar como natureza — você é natureza!
- Usar o tempo da terra — diamantes não são feitos em um ano fiscal, nem jazidas de petróleo, pense no longo prazo.
E, por fim, se a gente agir com propósito, com o coração e com valores pautados no amor e na interdependência, as próximas gerações seguirão melhores passos, pois elas nos espelham, assim como nós estivemos espelhando aqueles que nos trouxeram até aqui, até a ruptura.
Olhe-se no espelho. Que exemplo você está criando e deixando de legado?
— Por um design eco-decolonial

Daniel Wahl
Como vemos o mundo influencia as necessidades reais ou identificadas que, por sua vez, influenciam nossas intenções. Se vejo o mundo como um lugar dominado pela competição acirrada por recursos limitados, lutarei contra outros para que minhas próprias necessidades sejam atendidas. […]
A maioria de nós cresceu e foi educada em uma cultura que basicamente subscreveu a perspectiva de escassez e competição — “a narrativa da separação”. As instituições, processos e incentivos que moldaram nossa experiência do mundo foram influenciados por esse ponto de vista e, assim, reforçaram as experiências de competição e relativa escassez.
O sistema educacional, o sistema econômico e a maneira como nos relacionamos com a natureza e com outros seres humanos, através dos produtos e serviços que produzimos e trocamos, reforçam as experiências de escassez e competição.
As decisões de design que tomamos no passado continuam influenciando a forma como vivenciamos e interpretamos o mundo.
Como a relação entre visão de mundo e design se reforça mutuamente, podemos começar intervindo em qualquer um deles. A inovação transformadora e o design para uma cultura regenerativa consistem em permitir que as pessoas vivenciem e vivam a “narrativa do interser” como uma realidade pessoal e social.
O design molda intencionalmente interações e relacionamentos.
— Design de Culturas Regenerativas

Mike Monteiro
Embora o estudo não crie uma ligação definitiva entre saúde mental e redes sociais — por causa do rigor acadêmico e tal — ele apresenta um argumento bem forte.
Felizmente, eu não sou acadêmico, e tenho pouca paciência pra esse cuidado todo, por mais bem-intencionado que seja. Então não tenho problema nenhum em dizer: o trabalho que a gente faz está matando pessoas. Se você procurar no Google por “mortes causadas por redes sociais”, vai achar mais exemplos do que gostaria.
Quem cresceu fazendo design de coisas pra internet precisa entender as consequências do que faz. A gente não tá mais só arrastando pixel na tela. Estamos construindo sistemas complexos que afetam a vida das pessoas, acabam com relacionamentos, espalham discursos de apoio e de ódio, e bagunçam a saúde mental delas.
Quando fazemos nosso trabalho direito, melhoramos a vida das pessoas. Quando não fazemos, pessoas morrem.
— Ruined by design: how designers destroyed the world and what we can do to fix it (tradução livre)

Rafael Cardoso
Não é responsabilidade dos designers salvar o mundo, como clamavam as vozes proféticas dos anos 1960 e 1970, até porque a crescente complexidade dos problemas demanda soluções coletivas. De todo modo, ninguém sabe exatamente o que quer dizer “salvar o mundo” hoje em dia. […]
O grande inimigo é sempre a ignorância, e as ideias preconcebidas que derivam da falta de exercício do pensamento. […]
Em termos históricos, o grande trabalho do design tem sido ajustar conexões entre coisas que antes eram desconexas. Hoje, chamamos isso de projetar interfaces. Trata-se, contudo, de um processo bem maior e mais abrangente do que imagina o projetista sentado à sua estação de trabalho.
A parte de cada um é entender sua parte no todo.
— Design para um mundo complexo
Pra encerrar, como prometido e caso você tenha gostado desse tipo de conteúdo, mês retrasado lancei o primeiro capítulo dessa história, com personagens diferentes mas igualmente utópica. Quem sabe pode ser sua próxima leitura 👇
Inclusive, querida pessoa designer, lembre sempre: repertório não é importante só pros benchmarkings da vida comercial. É pra tudo. Estude a história, os contextos e as motivações das coisas serem como são.
Se quiser conversar sobre design, comenta aqui ou me chama!
Aquele abraço!
Referências
Livros e artigos
- Citizen designer: perspectives on design responsibility, de Steven Heller e Véronique Vienne;Design como atitude, de Alice Rawsthorn;Design para um mundo complexo, de Rafael Cardoso;Por um design eco-decolonial, de Coral Michelin;Ruined by design: how designers destroyed the world and what we can do to fix it, de Mike Monteiro.
Vídeos
- Alice Rawsthorn: Design as an Attitude, de U-M Stamps School of Art & Design;Eduardo Galeano em Sangue Latino, de Canal Brasil;How designers destroyed the world, Mike Monteiro at USI, de
USI Events.
Eu ainda quero um design utópico was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.