A reflexão que mudou a forma que enxergo o design.

“Como atividade voltada para a solução de problemas por meio de projetos, o design tem exercido historicamente a tarefa de criar objetos de uso.
Os artefatos gerados possuem duas dimensões: sua configuração material e sua capacidade de mediar relações — ou seja, grosso modo, a dimensão formal e a informacional.
A falha trágica do design é que todas as formas são efêmeras, em maior ou menor grau. À medida que os objetos viram dejetos, aquele projeto que ontem operava como solução, hoje se apresenta como obstáculo e problema.”
— Rafael Cardoso.
Se prepara pra uma aventura. Mentalmente falando, claro. Mais especificamente, uma aventura filosófica.
Pra isso, quero te apresentar um filósofo que se mudou pro Brasil pra fugir do nazismo durante a Segunda Guerra e, em terras tupiniquins, ajudou o design (e a comunicação em geral) a se encontrar enquanto atividade, material e imaterial.
Tô falando de Vilém Flusser, naturalizado checo-brasileiro, autor de livros e artigos que acabaram perdidos entre a década de 60 e 80, mas que vêm sendo resgatados por autores brasileiros.
Hoje, vamos conhecer seu ensaio chamado “Design: obstáculo para a remoção de obstáculos?”, de 1988.
Então, se acomoda, aperta o cinto e abre a cachola, porque vai começar. E espero que você curta essa aventura assim como eu curti.
Sobre objetos, objetos de uso e cultura
Flusser começa seu ensaio com algumas definições importantes que vão acompanhar o nosso raciocínio até o final. E esse também é nosso ponto de partida aqui.
Primeiro, sobre a palavra objeto.
Um “objeto” é algo que está no meio, lançado no meio do caminho (em latim, ob-iectum; em grego, problema).
Depois, uma derivação: objeto de uso.
Um “objeto de uso” é um objeto de que se necessita e que se utiliza para afastar outros objetos do caminho.
Percebeu a contradição? Um objeto pra se livrar de outro. Inclusive, podemos chamar isso de “dialética interna da cultura” se, por cultura, a gente entender como sendo a totalidade de objetos de uso.
Resumindo, funciona assim: você “caminha” pelo mundo e ele é problemático, cheio de objetos (obstáculos). Aí você, querendo seguir sua trajetória, “vence” essas dificuldades criando objetos de uso e, consequentemente, cultura, porque os objetos de uso são parte integrante do conjunto de fatores que moldam uma cultura.
A ironia é que esses mesmos objetos de uso que um dia te “salvaram” vão, cedo ou tarde, se transformar em apenas objetos. Às vezes, mais de uma vez. Às vezes, pra (quase) sempre.
Na verdade, os objetos de uso se tornam um problema duplo: primeiro, porque você precisa deles pra seguir adiante; segundo, porque eles tão sempre no seu caminho.
Ou seja, quanto mais você segue sua vida, mais a cultura também se torna problemática, cheia de objetos. Consequentemente, a sociedade. Deu pra entender a relação?
- Objeto = problemaObjeto de uso = projeto (design) pra resolver o objetoCultura = reunião de objetos de uso (aprendizados, ferramentas, projetos, etc.).
Ah, e quer um exemplo de objeto de uso abundante na sociedade que também é objeto? O carro. Um grande acerto de design, com algumas boas ressalvas. Hoje, somos reféns desse projeto feito pra “adiantar” nossa vida mas que também “atrasa”, a partir do momento que causa problemas de várias outras maneiras e em diferentes esferas da sociedade.
Essa, felizmente ou infelizmente, é a ordem natural e lógica das coisas e não-coisas.
A partir desse raciocínio que Flusser nos apresentou, podemos concluir então que somos parte integrante, influenciadora e também vítima desse grande ecossistema de soluções parciais. Ouso dizer até que a maioria dos objetos de uso hoje em dia (materiais ou não) foram criados por alguma pessoa intitulada designer. E tá tudo bem, a efemeridade acaba sendo inerente do processo.
Bom, a lógica é essa. Tudo certo até aqui? Então, vamos pra consequência desse raciocínio.
A responsabilidade da pessoa designer perante os objetos de uso
“No caso dos objetos de uso, eu topo [na vida] com projetos e designs de outras pessoas. […]
Objetos de uso são, portanto, mediações (media) entre mim e outras pessoas, e não meros objetos. São não apenas objetos como também intersubjetivos, não apenas problemáticos, mas dialógicos.
A questão relativa à configuração [e responsabilidade] poderá, então, ser formulada do seguinte modo: posso configurar meus projetos de modo que os aspectos comunicativo, intersubjetivo e dialógico sejam mais enfatizados do que os aspectos objetivo, objetal, problemático?”
— Vilém Flusser.
O que difere o destino de objetos de uso do destino de meros objetos é que, nos objetos de uso, a gente tem a oportunidade de minimizar o problema futuro. No objeto, não. Ele é o problema cru, o qual “empurramos” pro futuro com nossas soluções.
Como minimizamos isso? Tornando nossos objetos de uso mais comunicação e menos ruído.
Por isso, Flusser bate na tecla da responsabilidade em cima das criações.
A pessoa que projeta objetos de uso (aquele que faz cultura) lança obstáculos no caminho dos demais, e não há como mudar isso. […]
Deve-se, no entanto, refletir sobre o fato de que, no processo de criação dos objetos, faz-se presente a questão da responsabilidade, […]
A responsabilidade é a decisão de responder em nome de outras pessoas. É uma abertura perante os outros. Quando eu decido responder pelo projeto que crio, enfatizo no objeto de uso que desenho o aspecto intersubjetivo, e não o objetivo.
Pois sim, você é responsável pelo que cria. Como vimos, nossos produtos mudam a cultura. Nossos designs moldam a sociedade.
A conclusão dessa aventura deixo nas palavras de nosso saudoso Vilém Flusser:
“Estamos começando a nos tornar cada vez mais conscientes do caráter efêmero de todas as formas (e, consequentemente, de toda criação). Pois os dejetos começaram a obstruir nosso caminho tanto quanto os objetos de uso.
A questão da responsabilidade e da liberdade (inerente ao ato de criar) surge não apenas quando se projetam os objetos, mas também quando eles são jogados fora.
Pode ser que essa tomada de consciência da efemeridade de toda criação (inclusive a criação de designs imateriais) contribua para que futuramente se crie de maneira mais responsável, o que resultaria em uma cultura em que os objetos de uso significariam cada vez menos obstáculos e cada vez mais veículos de comunicação entre os homens.
Uma cultura, em suma, com um pouco mais de liberdade.”
Um objeto de uso — lê-se design, projeto — acaba por sempre ser um objeto — lê-se obstáculo, problema — de alguma maneira e em algum momento, e devemos nos esforçar pra minimizar e prever esses riscos. Temos esse poder e, com grandes poderes… você sabe.
Ah, e vale lembrar que estamos falando de um ensaio escrito 37 anos atrás. Hoje, fica ainda mais fácil perceber o quanto nossas soluções são descartáveis, efêmeras e básicas perante à complexidade também inerente do mundo em que vivemos.
Como Flusser bem concluiu, nossos projetos são como veículos de comunicação que acabam por nascer com data marcada pra causarem algum ruído.
A questão que fica é: como podemos fazer um design onde o ruído possa existir atrapalhando o mínimo possível a comunicação?
E aí, o que achou da nossa aventura filosófica? Também te fez refletir sobre a importância de nosso trabalho?
Se quiser conversar sobre design, comenta aqui ou me chama!
Aquele abraço!
Referências
- Design para um mundo complexo, Rafael CardosoO mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação, Vilém Flusser
Design: um obstáculo na remoção de obstáculos? was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.