UX, interfaces amigáveis e apostas: O que isso tem em comum?
Como princípios do design e gamificação manipulam a percepção de ganho e influenciam no comportamento de usuários em plataformas de apostas.
Você já esteve em um Cassino? Caso não, pode ser que já tenha assistido algum filme onde os personagens passem por um.
Lembro-me do filme Percy Jackson e o Ladrão de Raios (2010). Em meio a aventuras, Percy e seus amigos ficam presos no Hotel Lotus Casino devido a um efeito mágico que retarda o fluxo do tempo ali dentro. Com diversos eventos, luzes, sons e efeitos relacionados a jogos e diversão, estavam perdidos.
Com exceção da ficção imposta pela trama, a relação entre o filme e o mundo real no que diz respeito a jogos de azar é muito parecida. Com a popularização, divulgação e facilidade de acesso às bets, atualmente temos uma epidemia de proporções enormes acontecendo silenciosamente.
Uma experiência em águas internacionais
Certa vez, quando viajava em um navio de cruzeiro tive a oportunidade de jogar em máquinas caça-níqueis, aquelas que se vê em Las Vegas nos filmes.
Segundo a legislação brasileira vigente, enquanto navega em águas internacionais as companhias possuem a autorização de abrir espaços de Cassino a bordo.
Consciente de que estava utilizando dinheiro real, estabeleci um valor, troquei por um cartão no caixa, escolhi a temática da máquina (eram muitas), a desbloqueei com o meu cartão da cabine, depositei e estudei aquela interface antes de apertar quaisquer botões.
Como designer, estudo de forma inconsciente toda e qualquer interface e experiência que passo e esta certamente me marcou pois me vi envolto a uma descarga inexplicável de dopamina. Os gatilhos eram muitos:
Diversos efeitos, brilhos, sons altos e agradáveis. A cada vez que girava o valor diminuía. Em alguns raros momentos os efeitos eram ainda maiores e os sons acompanhavam, com mensagens de sucesso e o saldo subindo.
“Estou ganhando!”
— Jogador Desconhecido
Ao analisar friamente o valor daquela jogada era 0,50 e o “ganho” de 0,30. Ou seja, um prejuízo de 0,20.
Jogar, jogar e jogar…
Por trás de todas as interfaces de jogos há um conceito de gamificação. Entre os aspectos desse conceito estão a sensação de progresso, recompensas e conquistas através de desafios, o estado de imersão (ou flow) e o feedback imediato. A diferença crucial ocorre quando esse jogo vale dinheiro.
O que outrora foi uma atividade de prazer e utilizada como hobby e descontração, agora pode desencadear problemas sérios e talvez irreversíveis, como a ludopatia.
A ludopatia ou doença do jogo patológico, ocorre quando o indivíduo possui a incapacidade de controlar a vontade de jogar. Esse vício pode gerar consequências trágicas nos aspectos financeiro, emocional e social.
Segundo o Departamento de Psiquiatria da USP, o Brasil tem aproximadamente dois milhões de viciados em jogos. Um estudo recente da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), em parceria com a AGP Pesquisas, aponta que 63% de quem aposta no país teve a renda comprometida com as bets. Outros 19% pararam de fazer compras no mercado e 11% não gastaram com saúde e medicamentos.
Ao atrair jogadores com promessas de ganhos fáceis e a adrenalina relacionada a incerteza (e se eu ganhar?), mais e mais pessoas acabam nessa armadilha.
Mas e o design?
O design tem papel fundamental na amplificação das sensações geradas a partir da ação de apostar online. Como o relato do caça níquel e a gamificação, todos os efeitos, sons e gatilhos psicológicos aliados ao acesso facilitado pelo smartphone são amplificadores.
O conceito ético de deceptive patterns (padrões enganosos) é extremamente evidente. Todos os feedbacks em caso de vitória em uma rodada são proporcionalmente inversos no caso de perda.
Como o designer Andrey Knabbenn explorou em seu vídeo brilhante de análise, todas as sensações e o foco cognitivo são propositais para eliminar feedbacks negativos e focar em sensações positivas, com interface extremamente amigável, de fácil acesso e com baixa barreira de usabilidade.
Vieses cognitivos, o outro lado da moeda e reflexões…
Cada vez mais focados em operar através de vieses cognitivos, gamificação e padrões enganosos disfarçados, os aplicativos de bets são projetados de maneira proposital para despertar a dopamina e sensação de ganho, mesmo na situação de perda.
Esse trabalho proposital é extremamente controverso e onde o UX e a ética se encontram.
Aplicativos como o Duolingo que visam gamificar o aprendizado de idiomas estão na ponta inversa dessa balança, usando estratégias semelhantes de design para uma interface educacional e de aprendizado.

A gamificação criada no aplicativo Gymrats também tem esse foco. Voltado a prática de atividade física, ele opera através da criação de grupos e coloca seus membros para uma disputa saudável onde a pontuação é ganha após o registro de determinada atividade.
Essa reflexão mostra que a mesma lógica gamificada atribuída ao educacional ou voltada para a prática de atividade física, também é usada em contextos onde o que está em jogo pode ser muito maior do que se pensa.
Devemos nos perguntar se o que projetamos está prolongando o tempo de tela ou promove um uso saudável da tecnologia.
Há um estímulo do flow de uma atividade ou é apenas uma forma de encorajar o vício?
Tudo que interagimos comunica algo. Decisões de design, conscientes ou não, moldam comportamentos e influenciam percepções. Ao estudar o universo das apostas digitais e seus modelos, entendemos que a experiência do usuário é extremamente humana e pode tornar um simples aperto de botão na tela uma perda gigante, mesmo que o usuário não perceba.
Compreendendo mecanismos de gamificação e relacionados à psicologia cognitiva conseguimos elaborar experiências mais envolventes e responsáveis.
Como comunidade de design, nossa responsabilidade é cultivar a atuação ética que pode ao mesmo tempo engajar usuários e cumprir objetivos de negócio ao mesmo tempo em que respeitamos eles.
Na próxima vez que interagir com uma interface gamificada ou estiver com aquela sensação de continuar pense se você ainda está no controle da ação.
Materiais complementares
- 9 estratégias de design que o TIGRINHO usa para te viciar — Andrey Knabben no YoutubeBrasil vive epidemia de vício em apostas online — DW BrasilO que é gamificação — Blog PUCPRVício em ‘bets’ e jogos de aposta online afetam famílias, mercado de trabalho e economia — G1
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