Você também quer. Só ainda não leu este texto.

- Entrevistador:
O senhor não está sendo muito utópico?
- Aloísio Magalhães:
Muito utópico, e isso não me ofende.
Nada que tenha um significado mais profundo deixa de ter certo aspecto utópico. Ele estimula a perseguição.
É próprio do utópico você não atingi-lo, mas, se não for em busca dele, se você não quiser sair do convencional, aí então o marasmo será inevitável.
— O papel social do design gráfico, Braga Marcos Da Costa
Ah, a utopia! Esse ponto futuro inalcançável. Tão perfeito que não tem como existir.
Aloísio Magalhães disse que o design surge como uma disciplina capaz de se responsabilizar por uma parte significativa deste processo [de melhoria social]. Porque não dispondo nem detendo um saber próprio, utiliza vários saberes que se ocupam da racionalização e da medida exata — os que dizem respeito à ciência e à tecnologia — e de outro, daqueles que auscultam a vocação e a aspiração dos indivíduos — os que compõem o conjunto das ciências humanas (fonte).
E o que isso tem a ver com utopia? Bom, tudo.
Nesse texto, vamos dar voz a designers que defendem visões consideradas utópicas pra nossa atuação no mundo atual.
Ou seja, que definem o design como algo pra sociedade, antes do lucro. Que acreditam no design como ferramenta de mudança social e trabalham pra isso — e sim, o “dar voz” é trazer suas próprias falas.
Designers e o que falam sobre design

Carla Piaggio
A responsabilidade social dos designers precisa passar também pelas metodologias e práticas de trabalho. Há disponível uma vasta gama de recursos técnicos de acessibilidade comunicacional ainda pouco difundidos.
Tenho pesquisado e aprendido junto com a equipe de minha agência sobre escolha cromática inclusiva para pessoas com daltonismo, publicações digitais com recursos interativos e otimizadas para a correta leitura em voz alta por aplicativos, audiodescrição de imagens, sites com intérprete virtual de Libras e com ajuste de cores, contrastes e fontes. São ferramentas que podem ampliar o acesso da comunicação e torná-la mais compreensível para um público maior.
Essas e tantas outras possibilidades de contribuição — inclusive as que ainda precisam ser criadas — podem e devem expandir o olhar e as práticas de designers, lideranças, organizações sociais, empresas, governos. Responsabilidade social, ambiental e de governança são pautas justas e urgentes que demandam sempre mais soluções e pessoas envolvidas.
Sigamos cocriando coletivamente!
— Quais contribuições o design pode e tem oferecido com relevante impacto social?

Cat Drew
O design, por natureza, tá sempre mudando. Fazer design é também aprender, refletir e repensar — tanto sobre o processo quanto sobre o que você tá criando. Só que, agora, as perguntas que o design precisa responder (inclusive as que a gente se fez na nossa nova estratégia) são muito mais complexas e sistêmicas.
E — como esse ano [2020] deixou bem na cara — existem desigualdades raciais enormes na nossa sociedade, que geram experiências muito diferentes em saúde, justiça e oportunidades. Sem contar que o jeito como a gente tá destruindo o planeta afeta todo mundo — mas uns muito mais que outros.
Por isso, o design precisa agir de outro jeito. Não dá mais pra criar uma coisinha isolada só pra deixar o sistema atual um pouco mais eficiente (tipo mais rápido, mais fácil, mais lucrativo).
A gente precisa pensar e criar de forma mais profunda, radical, regenerativa e coletiva — entendendo que uma parte enorme do nosso papel é provocar mudanças e juntar pessoas pra construir essas soluções juntos.”
— Evolving design practice at Design Council
Falamos mais sobre Cat e seu trabalho neste artigo:
Problemas complexos, o design e a sociedade
Gui Bonsieppe
Hoje o termo “utopia” não tem boa acolhida. Para alguns é um conceito anacrônico. Tem sido objeto de críticas e até denúncias por parte do pensamento rotulado com o termo pós-modernismo.
Em alguns casos, os críticos chegam ao extremo de querer estabelecer uma conexão entre autoritarismo e utopia, o que me parece uma leitura bastante tendenciosa e injusta.
Pois, sem componente utópico não há projeto [de design], ou no máximo será um projeto desvinculado dos laços sociais. É neste ponto que modernidade e pós-modernidade revelam suas posições antípodas.
Não se deve esquecer que a utopia é um sonho de uma sociedade melhor, ou como caracterizou Adorno, a utopia como negação específica do que é. Por isso estarão fora do campo do design os projetos que não visam a uma sociedade melhor.”

Hugo Cristo
Gui Bonsiepe e tantos outros pensadores e divulgadores do Design antes dele se esforçaram bastante para construir uma distinção forte entre o ato projetual que efetivamente introduz inovações ao cotidiano, melhorando a vida das pessoas, e aquele outro menos nobre e tão ou mais utilizado pela indústria que se resume simplesmente a pensar na maquiagem ou em aspectos pífios dos produtos que já estão por aí.
[…] o Design está há algum tempo a serviço de questões bem diferentes daquelas defendidas pelas vanguardas e pelos precursores do campo.
Essa mudança de parâmetros não é uma manipulação perversa das intenções dos pobres designers. Pelo contrário, é um agenciamento ordinário do capitalismo que transforma qualquer boa intenção em business.
— Design sem designer

Joaquim Redig
Enquanto as melhorias sociais não forem realizadas dentro do expediente, na produção e no comércio, não haverá verdadeiras melhorias sociais.
Enquanto nos ocuparmos apenas dos sintomas da doença, esquecendo as causas, não teremos saúde. E o design é um componente indispensável à reversão desse quadro.
— O sentido do design, segundo Joaquim Redig
Falamos mais sobre Joaquim e seu ponto de vista neste artigo:

Katherine McCoy
Como que uma sociedade tão diversa consegue criar valores em comum e, ao mesmo tempo, respeitar a liberdade pessoal e as diferenças culturais? O design — e a educação em design — fazem parte tanto do problema quanto da solução.
A gente não pode mais ficar parado, só assistindo. Designers precisam ser cidadãos ativos e ajudar a construir a sociedade e o governo. E mais: usar nossas habilidades pra incentivar outras pessoas a acordarem e se envolverem também.
— Citizen designer

Susan Szenasy
Toda terça de tarde, a gente se reúne numa sala sem janela, num prédio gigante da New School na Quinta Avenida, em Nova York — aquele tipo de espaço sem alma, com ar condicionado barulhento, que todo mundo já se acostumou a aceitar — pra conversar sobre Ética no Design.
Dou essa disciplina, que faz parte do curso de humanidades da Parsons, desde 1997, quando me pediram pra criar a matéria. O foco é responsabilidade: com o planeta, com o lugar onde a gente vive, com a comunidade, com a profissão, com os clientes e com a gente mesmo.
Pra mim, ética significa entender que a gente tem um dever moral, uma obrigação com as outras pessoas e com todos os seres vivos. E isso exige que a gente cuide, de forma responsável, do meio ambiente, que é o que mantém nossas vidas. Cuidar do planeta, aliás, deveria ser nossa maior prioridade como seres pensantes, que falam, que criam, que têm livre arbítrio. Porque sim, a gente tem escolha.
Na minha visão, ser ético é escolher proteger água limpa, ar puro, comida saudável — tudo aquilo que a Terra oferece — e garantir que isso continue existindo pras próximas gerações.
— Citizen designer

Victor Margolin
Para finalizar, eu quero introduzir o conceito de designer cidadão, o qual eu primeiramente encontrei em um artigo sobre antropologia editado por Stephen Heller e Veronique Vienne.
Eu vejo o designer como tendo três possibilidades de introduzir seu próprio talento para a cultura. A primeira é por meio do design, que é, fazendo coisas. A segunda é por meio de uma articulação crítica acerca das condições culturais que elucidam o efeito do design na sociedade. E a terceira possibilidade é por meio da condução de um engajamento político.
Muito do poder que afeta todas as formas do design está nas mãos erradas e apenas pode ser considerado como um pensamento coerente por meio de estratégias de ação.
Eu gostaria de concluir [o artigo ‘O designer cidadão’] com as mesmas palavras com as quais William Morris encerrou sua palestra ‘Art under Plutocracy’, há mais de cento e vinte anos atrás:
‘Um homem com uma ideia em sua cabeça corre o risco de ser considerado um louco; dois homens com a mesma ideia em comum podem ser tolos, mas dificilmente podem ser loucos; dez homens dividindo uma ideia começam uma ação; uma centena chama atenção como fanáticos; mil e a sociedade começa a tremer; cem mil e se inicia uma guerra, cujas vitórias são tangíveis e reais.
E por que cem mil e não cem milhões para se atingir a paz na terra? Você e eu que concordamos com isso juntos, somos nós que temos que responder a esta questão.’
Pra gente concluir
Queria voltar um pouco pra imagem do início do texto. É sobre ela que vamos falar pra fechar esse assunto: um último ato inspiracional pra você sair daqui enxergando as coisas de uma maneira diferente.
A imagem do início do texto faz parte da série “Cartemas brasileiros”, de Aloísio Magalhães. Cartema, por sua vez, é uma técnica de colagem de uma mesma imagem de cartões-postais, fixados lado a lado em posições diferentes, dando ao conjunto uma nova unidade visual, em contraste à continuidade das imagens montadas repetidamente em módulos simétricos.
O filósofo Antônio Houaiss disse que, pela justaposição criteriosa dessas pequenas imagens, Aloísio buscava traçar uma harmonia no desenho em busca de nova experiência plástica. Uma experiência que, vinda da montagem de cartões-postais, pudesse também ser feita por qualquer pessoa.
“O desenho industrial [design] me obrigou a ser mais pragmático, a ter contato mais direto com o meu meio social e a aceitar muitos limites.
Hoje, quando faço os cartemas, eu ainda estou aceitando um limite: o do cartão-postal. Mas, assim como não acredito que a pintura esteja morta, não coloco abaixo de nada que faço minhas atividades como desenhista industrial [designer].
Acabei descobrindo que a cultura não é eliminatória, mas somatória.”
— Aloísio Magalhães (1974), em entrevista ao Diário de Notícias.
Sim, Aloísio foi um baita designer. E por isso mesmo não deixava de aplicar o design, em sua essência, em tudo que fazia — da política à arte.

Enfim, enquanto for utopia crer numa sociedade mais justa, igualitária e próspera, acredito que o design vai continuar sendo utópico.
Ser designer que acredita na utopia é fazer sua microparte pra que alguma microcoisa no mundo mude — nem que seja a luta pela priorização da acessibilidade no site da empresa em que você trabalha ou pela transparência na hora de informar valores monetários em um aplicativo, por exemplo.
Se você chegou até aqui, tenho um conselho pra te dar:
Não foque seus estudos só em Norman e Nielsen, ou qualquer outra pessoa designer que criou [coloque aqui qualquer método ou tecnologia “inovadora”].
Dê uma atenção pra outras vertentes e jeitos de fazer design também, inclusive no cenário brasileiro. Estude sobre Aloísio Magalhães, Anne Bush, Joaquim Redig, Gui Bonsiepe, Katherine McCoy, Steven Heller, Vèronique Vienne, Stephen Eskilson, Victor Margolin, David Berman e Hugo Cristo (só pra citar alguns) e descubra novas formas de enxergar o impacto que seu trabalho pode causar na sociedade.
Inclusive, ó o tanto de coisa interessante sobre design que a gente abordou aqui sem citar nenhum nome famoso por construir uma interface digital, por exemplo.
Repertório não é importante só pros benchmarkings da vida comercial. É pra tudo. Estude a história, os contextos e as motivações das coisas serem como são. Como diz meu tio João: faz um bem danado, sô!
Se quiser conversar sobre design, comenta aqui ou me chama!
Aquele abraço!
Referências
Artigos
- Design e crise, de Gui BonsiepeO que o design industrial pode fazer pelo país?, de Aloísio MagalhãesO ritmo visual nos Cartemas de Aloísio Magalhães, de Ayrthon e Sandra OliveiraO designer cidadão, de Victor Margolin
Blogs, livros e ebooks
- Museu de Arte Moderna Aloisio MagalhãesDesign sem designer, de Hugo CristoO papel social do design gráfico, de Marcos BragaCitizen Designer: Perspectives on Design Responsibility, de Steven Heller e Véronique Vienne
Eu quero um design utópico was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.