Acessibilidade e Inteligência Artificial: O que as máquinas ainda não entendem
IA ajuda e muito, mas é a intencionalidade humana que garante acessibilidade.

Esse artigo é um compilado dos aprendizados adquiridos na 1ª Edição da Masterclass de Inteligência Artificial e Acessibilidade promovida pelo Marcelo Sales , CEO da Tudo é Acessibilidade.
Um fato interessante: essa Masterclass ocorreu no dia 15 de Maio de 2025, dia em que ficou marcado como o 14º Dia Global de Conscientização sobre Acessibilidade (GAAD – Global Accessibility Awareness Day). O objetivo do GAAD é “fazer com que todos conversem, reflitam e aprendam sobre acesso e inclusão digital, e sobre as pessoas com diferentes deficiências” (tradução livre).
Todos os links, referências e conteúdos foram fornecidos e devidamente referenciados pelo Sales durante a aula. Você também vai encontrar neste artigo algumas das minhas conclusões e pensamentos sobre o assunto.
“Pessoas ignoram o design que ignora pessoas.”
— Frank Chimero
Essa frase apareceu durante a masterclass de Marcelo Sales sobre Acessibilidade e Inteligência Artificial. Uma daquelas afirmações que deixa uma grande provocação: quem estamos deixando de fora quando desenhamos sistemas, produtos ou serviços?
Sabemos que a Inteligência Artificial (IA) está sendo aplicada em basicamente tudo: recomendações de produtos, diagnósticos médicos, produção de textos, edição de imagens e por aí vai…
Naturalmente, surgem perguntas sobre o futuro das profissões, sobre o que a IA pode ou não pode fazer. E uma das perguntas mais comuns é: “será que a IA vai roubar nossos empregos?”.
IA e a substituição de pessoas
Sim, a IA pode substituir tarefas humanas. Mas isso não significa que ela substitui automaticamente pessoas.
Como disse Tobi Lütke, CEO da Shopify, “as equipes devem demonstrar por que não conseguem fazer o que querem usando IA”.
Isso quer dizer que, se um trabalho é puramente reprodutível, sistematizável e padronizado, ele está mais suscetível à automação e, consequentemente, a uma possível substituição.
Porém, quando falamos de acessibilidade, estamos entrando em um campo que vai muito além da execução técnica.
Três tipos de conhecimento
Para entender melhor sobre trabalhos reproduzíveis, durante a Masterclass, Sales destacou três tipos de conhecimento:
- Técnico. Conhecimento sistematizável, documentado, baseado em regras, procedimentos e métodos. A IA aprende e aplica esse tipo de conhecimento com facilidade.Empírico. Conhecimento adquirido por meio da observação e da vivência. As máquinas podem simular esse tipo de conhecimento por meio de grandes volumes de dados e identificação de padrões.Tácito. Conhecimento intuitivo, pessoal e muitas vezes difícil de descrever/documentar. Esse conhecimento nasce da experiência, da sensibilidade e da convivência com outras pessoas. O background individual conta muito. É aqui que a IA encontra seu limite.
E também é aí que mora uma diferença essencial: O conhecimento tácito é particular de cada pessoa. É por isso que, por exemplo, duas pessoas formadas no mesmo lugar, na mesma época e com os mesmos professores podem reagir de formas completamente diferentes diante de um problema. Cada uma carrega um repertório que vai além da formação… e isso é algo que não se ensina, mas se vive.
Designers que não se alimentam de cultura, por exemplo, podem ter mais dificuldade criativa do que quem frequenta cinema, teatro, bairros diferentes, parques, praças… Quem vive de forma mais ampla, sem preconceito, com a mente aberta para o novo, cria mais conexões sociais e mentais. E criatividade, no fim das contas, é isso: cruzamento de referências da vida real. O Sales trouxe esse ponto de vista e eu super concordo.
Não é sobre esperar uma nova ideia, uma solução. Essas ideias aparecem com mais facilidade porque o terreno já está fértil de experiências, e é esse repertório vivido que dá densidade e singularidade ao que a gente projeta.
Na acessibilidade, isso fica ainda mais evidente. Muitas vezes, o que precisa ser percebido não está documentado em lugar nenhum. Está no gesto, no silêncio, no detalhe, na vivência...
A IA, por mais avançada que seja, não acessa esse tipo de repertório, até porque ele não está em nenhuma base de dados, e sim na vida vivida.
Projetar para acessibilidade é um verdadeiro exercício de atenção. De perceber o que está ausente, o que ficou de fora e o que pode acabar excluindo, mesmo que não seja a intenção. É uma prática coletiva, sustentada por escuta, empatia, alteridade e cuidado.
Onde a IA pode ajudar
Hoje já existem aplicações promissoras da IA em acessibilidade:
- Texto alternativo para imagensReconhecimento de fala para gerar legendasSimplificação de linguagemDetecção automática de idioma (inclusive com variações regionais)Ajuste de contraste e espaçamento visualAnálise da estrutura de títulos e hierarquia semânticaIdentificação da finalidade de linksApoio na geração de componentes acessíveis
Essas soluções ajudam a tornar produtos mais acessíveis, principalmente em escala.
Por exemplo, a Microsoft desenvolveu o Seeing AI, que descreve o ambiente ao redor para pessoas com deficiência visual com um nível de detalhe significativo, sendo uma ótima ferramenta para gerar textos alternativos e descrever imagens.
Um outro exemplo é do Grupo Boticário, que usou IA para gerar descrições automáticas no e-commerce, facilitando o acesso ao conteúdo por leitores de tela.
Mas ainda há limitações importantes que precisam ser consideradas…
O que a IA ainda não entende
A IA pode identificar padrões, mas não entende intencionalidade.
Um título destacado visualmente pode não ser, de fato, um título do ponto de vista semântico. A IA não consegue distinguir isso sozinha, pois isso dependerá da intencionalidade.
A IA não entende que um carrossel visual deve ser estruturado como uma lista não ordenada, com informação sobre a quantidade de itens e suas posições, pois isso também precisa levar em consideração a intencionalidade. Isso dá ao usuário uma percepção espacial que é muito importante na navegação por tecnologias assistivas. O ajuste semântico nesse caso é essencial nesses casos para garantir a compreensão.
A semântica importa
“O maior problema que enfrentamos na acessibilidade web é a falta de conhecimento na semântica do código.”
— Marcelo Sales.
Esse problema se encontra na forma de como compreendemos e na maneira em que aplicamos. Isso inclui, por exemplo, usar listas corretamente (especialmente em menus e carrosséis), nomear botões com propósito claro (ex.: “próximo item” é mais significativo do que “para a direita”), garantir estrutura hierárquica de títulos (H1, H2, H3...) alinhada com a estrutura visual e informacional, etc.
Design e código precisam conversar. O visual não é suficiente. E semântica sem visual também não resolve. Acessibilidade exige esse cruzamento constante.
Em resumo…
A IA tem potencial para ampliar acessos, apoiar ajustes em larga escala e democratizar soluções. Mas ela ainda opera em cima de padrões, não em cima de experiências. Ainda é preciso alguém para decidir o que deve ser descrito, como aquilo será lido, o que precisa de contexto e o que está implícito.
Isso exige repertório técnico, mas também escuta ativa, diversidade de perspectivas e, principalmente, intencionalidade no projeto.
A acessibilidade não pode ser encarada como um recurso adicional ou uma etapa final de verificação. Ela precisa estar presente desde o início, na concepção, nas conversas, nas escolhas visuais, semânticas e técnicas. É uma prática contínua que exige atenção constante diante das diferentes formas como diferentes pessoas interagem com o mundo digital.
A IA pode apoiar esse processo, e já apoia, em muitos pontos. Mas ela precisa ser guiada, direcionada e corrigida. E para isso, seguimos precisando de pessoas dispostas a fazer perguntas, escutar com cuidado, testar com empatia e agir com responsabilidade.
Se a tecnologia evolui, o cuidado precisa evoluir junto. Porque o que a IA ainda não entende, continua sendo nossa responsabilidade garantir. Projetar com intencionalidade é o que mantém a acessibilidade viva, relevante e, acima de tudo, humana.
Cuidar de acessibilidade é reconhecer diferenças.


Referências
- Checklist Norma ABNT NBR 17225 (WCAG) — Academia de AcessibilidadeEntenda como o Grupo Boticário utilizou inteligência artificial para melhorar a acessibilidade do e-commerce | O blog da AWSSeeing AI — Talking Camera for the Blindtobi lutke on X: “Reflexive AI usage is now a baseline expectation at Shopify” / XHome — GAADMONTEIRO, E. D. C. O CONCEITO DE INTENCIONALIDADE EM HUSSERL. INCONΦIDENTIA: Revista Eletrônica de Filosofia, Mariana-MG, v. 5, n. 10, p. 74–85, jul./dez. 2021.
Acessibilidade e Inteligência Artificial was originally published in UX Collective 🇧🇷 on Medium, where people are continuing the conversation by highlighting and responding to this story.